Normalidade foi mais um embuste
do Governo

Novo ano lectivo<br>– velhos problemas

Jorge Pires

O Go­verno exultou com a «nor­ma­li­dade» da aber­tura do ano lec­tivo, re­tó­rica em que foi acom­pa­nhado por al­guns co­men­ta­dores ao seu ser­viço e pelos cha­mados ana­listas po­lí­ticos. Es­tá­vamos em plena cam­panha elei­toral e com a pers­pec­tiva de PSD/​CDS terem o pior re­sul­tado de sempre era pre­ciso dar a mão ao Go­verno, pro­cu­rando, assim, fazer es­quecer a con­tes­tação de que foi alvo du­rante os quatro anos da Le­gis­la­tura.

Ne­nhum dos grandes pro­blemas que con­di­ci­onam o normal fun­ci­o­na­mento das es­colas pú­blicas (...) foi re­sol­vido

Mes­tres no ma­la­ba­rismo po­lí­tico e na ma­ni­pu­lação me­diá­tica, com­pa­raram o re­sul­tado da co­lo­cação de pro­fes­sores em 2015 com o triste epi­sódio ve­ri­fi­cado no ano an­te­rior, si­tu­ação que nem os mais pes­si­mistas ima­gi­navam poder acon­tecer, tendo fi­cado mesmo a con­vicção de que pior seria pra­ti­ca­mente im­pos­sível.

Mesmo assim, não fosse o diabo tecê-las, Go­verno e PSD/​CDS, não muito se­guros de que o im­pos­sível não se re­pe­tiria, e com al­guma dose de sau­do­sismo à mis­tura, adi­aram o pe­ríodo de aber­tura das es­colas em­pur­rando-o até 21 de Se­tembro. Não seja este Go­verno afas­tado de vez e ainda vol­ta­remos ao tempo de má me­mória em que o ano lec­tivo se ini­ciava a 7 de Ou­tubro.

Este atraso não é o único ele­mento de ava­li­ação da aber­tura do ano lec­tivo. Por exemplo, se ti­vermos em conta também a co­lo­cação dos pro­fes­sores, esta, mais uma vez, não correu bem – mais de 3000 pro­fes­sores foram co­lo­cados a, apenas, três dias úteis da aber­tura do ano lec­tivo, razão pela qual não pu­deram par­ti­cipar nas ac­ti­vi­dades de pre­pa­ração do ano lec­tivo. Acresce que após 21 de Se­tembro ainda foram co­lo­cadas largas cen­tenas de pro­fes­sores.

A con­versa da nor­ma­li­dade foi, pois, mais um em­buste dos muitos a que o Go­verno ces­sante nos ha­bi­tuou. Com ele, pro­curou omitir uma ver­dade ir­re­fu­tável: ne­nhum dos grandes pro­blemas que con­di­ci­onam o normal fun­ci­o­na­mento das es­colas pú­blicas, in­cluindo o pro­cesso de co­lo­cação de pro­fes­sores, e que têm con­tri­buído para a de­gra­dação das con­di­ções de en­sino/​apren­di­zagem nos úl­timos anos, foi re­sol­vido, e isso irá sentir-se ao longo do ano.

«Normal» só mesmo a in­com­pe­tência do Mi­nis­tério da Edu­cação e Ci­ência (MEC) e a es­tra­tégia do Go­verno de des­va­lo­ri­zação da Es­cola Pú­blica.

São muitos os pro­blemas que o PCP tem vindo a de­nun­ciar e que re­sultam da po­lí­tica de des­va­lo­ri­zação da Es­cola Pú­blica e de eli­ti­zação da Edu­cação que, nos úl­timos anos, teve ex­pressão con­creta no corte de cerca de três mil mi­lhões de euros nos or­ça­mentos da edu­cação. Mas seria re­du­tora uma ava­li­ação que se es­go­tasse na ideia de es­tra­tégia eco­no­mi­cista. Há, aqui, uma opção ide­o­ló­gica clara. Es­tamos pe­rante um pro­cesso de fra­gi­li­zação da Es­cola Pú­blica com vista à pri­va­ti­zação do en­sino, como se con­firma pela cres­cente oferta, anual, de mi­lhares de alunos das es­colas pú­blicas aos co­lé­gios pri­vados, me­dida que, para além de in­cons­ti­tu­ci­onal, lesa o Es­tado em de­zenas de mi­lhões de euros e pre­ju­dica a for­mação de cri­anças e jo­vens que passam, na es­ma­ga­dora mai­oria dos casos, a fre­quentar es­colas cuja ló­gica de fun­ci­o­na­mento é cen­trada no lucro. O que se passa na re­gião centro, no­me­a­da­mente com o grupo GPS, cujo cres­ci­mento está, como tem sido am­pla­mente de­nun­ciado, pe­ri­go­sa­mente li­gado à cir­cu­lação de ex-go­ver­nantes e altos qua­dros do MEC entre o apa­relho do Es­tado e a di­recção da­queles co­lé­gios é um ver­da­deiro es­cân­dalo que urge parar e punir.

Eli­tizar a edu­cação

Para o grande ca­pital e o seu braço po­lí­tico no Go­verno, é in­de­se­jável a exis­tência de uma es­cola cujo pa­ra­digma se centre na for­mação in­te­gral do in­di­víduo. Olham para a es­cola como um dos mais im­por­tantes ins­tru­mentos de for­ma­tação das cons­ci­ên­cias, e para a Es­cola Pú­blica em par­ti­cular, como uma es­cola de se­gunda des­ti­nada aos fi­lhos das classes la­bo­ri­osas e aos mais des­fa­vo­re­cidos da so­ci­e­dade. Uma es­cola que de­verá con­ferir uma for­mação mí­nima, de­ter­mi­nada pelos in­te­resses do mer­cado de tra­balho. Não aceitam a exis­tência de uma Es­cola Pú­blica de qua­li­dade, onde todos os jo­vens te­nham acesso ao co­nhe­ci­mento, aprendam a ques­ti­onar e a ser com­pe­tentes para uma in­ter­venção cons­ci­ente na vida eco­nó­mica, po­lí­tica, so­cial e cul­tural do país. A Es­cola Pú­blica que serve os seus in­te­resses de classe é outra: é a que con­tribui para a re­pro­dução das con­di­ções ide­o­ló­gicas que lhes per­mi­tirá per­pe­tuar no tempo o sis­tema vi­gente.

A eli­ti­zação da edu­cação re­flecte-se nos con­teúdos cur­ri­cu­lares, no en­ca­mi­nha­mento for­çado dos alunos, logo a partir do 9.º ano, para vias pro­fis­si­o­nais des­va­lo­ri­zadas, com o ob­jec­tivo, não de­cla­rado, de di­fi­cultar o acesso a um En­sino Su­pe­rior de qua­li­dade ele­vada a um grande nú­mero desses jo­vens. Mas também o au­mento dos custos com a edu­cação torna-os in­su­por­tá­veis para a grande mai­oria das fa­mí­lias, o que em vez de ate­nuar ou mesmo eli­minar as de­si­gual­dades eco­nó­micas e so­ciais, põe em causa o di­reito cons­ti­tu­ci­onal «ao en­sino com ga­rantia do di­reito à igual­dade de opor­tu­ni­dades de acesso e êxito es­colar».

Se­gundo os dados do úl­timo Inqué­rito às Des­pesas das Fa­mí­lias, re­a­li­zado pelo INE, um agre­gado fa­mi­liar com fi­lhos de­pen­dentes (36,6% dos agre­gados fa­mi­li­ares em Por­tugal) gastou, em média, com a edu­cação em 2014, 1082 euros, valor que em 2015 será su­pe­rior, até porque os ma­nuais es­co­lares ti­veram um au­mento médio de 2,6 por cento.

Às exi­gên­cias que se co­locam à Es­cola Pú­blica do ponto de vista hu­mano e pe­da­gó­gico, devem cor­res­ponder os meios e as con­di­ções. Ao con­trário, o ac­tual Go­verno PSD/​CDS impôs o au­mento do nú­mero de alunos por turma e, assim, ga­rantiu o des­pe­di­mento de mi­lhares de pro­fes­sores cri­ando mai­ores di­fi­cul­dades às es­colas que já se de­batem com ou­tros fac­tores de ins­ta­bi­li­dade. É certo que o de­sem­prego e a pre­ca­ri­e­dade la­boral não são pro­blemas ex­clu­sivos dos pro­fes­sores, são um pro­blema na­ci­onal que atinge os tra­ba­lha­dores de todos os sec­tores. Mas no caso deste grupo pro­fis­si­onal, para além da ins­ta­bi­li­dade que cria na sua vida pes­soal e fa­mi­liar, tem graves im­pli­ca­ções numa ac­ti­vi­dade que cons­titui im­por­tante par­cela da edu­cação de mi­lhares de cri­anças e jo­vens, a edu­cação es­colar. Esta si­tu­ação tem im­pacto ne­ga­tivo na qua­li­dade do en­sino, com par­ti­cular pre­juízo para os alunos mais vul­ne­rá­veis ao risco de in­su­cesso e aban­dono es­colar. Só nos úl­timos quatro anos foram des­pe­didos cerca de 20 000 do­centes con­tra­tados. No sis­tema mantêm-se do­centes com vín­culo pre­cário que têm 10, 15, 20 e mais anos de ser­viço. Ao con­trário da pro­pa­ganda do MEC, não há pro­fes­sores a mais, há sim turmas com ex­cesso de alunos o que im­pede os pro­fes­sores de acom­pa­nharem, pró­xima e atem­pa­da­mente, o pro­cesso de apren­di­zagem es­pe­cí­fico de cada um deles, da edu­cação pré-es­colar aos en­sinos Bá­sico e Se­cun­dário.

É neste con­texto de re­dução brutal do nú­mero de do­centes que se in­sere a Prova de Ava­li­ação de Ca­pa­ci­dades e Co­nhe­ci­mentos (PACC), agora de­cla­rada in­cons­ti­tu­ci­onal pelo TC, es­tra­tégia de hu­mi­lhação de pro­fes­sores que, desde que se aplica, já ex­cluiu cerca de 8000 do­centes dos con­cursos.

Todos os anos, as es­colas de­batem-se com pro­blemas sé­rios de fun­ci­o­na­mento e de acom­pa­nha­mento dos alunos de­vido à falta de psi­có­logos, bi­bli­o­te­cá­rios, as­sis­tentes ope­ra­ci­o­nais e ou­tros pro­fis­si­o­nais, cuja ne­ces­si­dade de­veria ser re­co­nhe­cida pelo MEC, pela im­por­tância que têm para os alunos e para a me­lhoria do am­bi­ente es­colar.

Mas não ficam por aqui os pro­blemas que im­pedem o normal fun­ci­o­na­mento das es­colas pú­blicas.

Mi­lhares de cri­anças sem apoio

Sus­ten­tado numa falsa des­cen­tra­li­zação de com­pe­tên­cias para as au­tar­quias e no alar­ga­mento da au­to­nomia das es­colas, o Go­verno avançou com o pro­cesso de mu­ni­ci­pa­li­zação da edu­cação, en­vol­vendo, nesta fase ini­cial, 15 mu­ni­cí­pios. Ao con­trário do que afirma, o que vamos ter, caso este pro­cesso não seja re­vo­gado, é mais um factor de des­va­lo­ri­zação da Es­cola Pú­blica, mais pri­va­ti­zação, re­curso a vias que des­va­lo­rizam os per­cursos aca­dé­micos dos alunos e con­tra­tu­a­li­zação com pri­vados de di­versas res­postas. Se dú­vidas pu­dessem existir aí está o exemplo da Câ­mara de Águeda que, logo no pri­meiro dia útil em que as­sumiu com­pe­tên­cias, in­formou os pro­fes­sores de uma Se­cun­dária que en­cer­raria o 3.º Ciclo do En­sino Bá­sico. Tal só não acon­teceu porque foi pronta a re­acção dos pro­fes­sores e também dos en­car­re­gados de edu­cação. Caso a in­tenção da Câ­mara vá por di­ante, te­remos mais um con­junto de pro­fes­sores sem com­po­nente lec­tiva na sua es­cola e, even­tu­al­mente, afas­tados para a re­qua­li­fi­cação, an­te­câ­mara do de­sem­prego.

Como se pode ve­ri­ficar, são muitos os pro­blemas que se co­locam ao fun­ci­o­na­mento da Es­cola Pú­blica e à co­mu­ni­dade edu­ca­tiva desde já, des­men­tindo de forma ca­te­gó­rica a pro­pa­lada nor­ma­li­dade na aber­tura do ano lec­tivo. No en­tanto, há uma si­tu­ação que, pela sua na­tu­reza, tem de me­recer de todos os que lutam por uma Es­cola Pú­blica de qua­li­dade, gra­tuita, para todos e in­clu­siva, a mais ve­e­mente re­pulsa, si­tu­ação que devia en­ver­go­nhar os res­pon­sá­veis por ela. Estou-me a re­ferir à forma dis­cri­mi­na­tória como têm sido tra­tados mi­lhares de cri­anças e jo­vens com ne­ces­si­dades edu­ca­tivas es­pe­ciais (NEE).

A Es­cola Pú­blica de­mo­crá­tica deve res­ponder aos ob­jec­tivos da in­clusão, ga­ran­tindo efec­ti­va­mente a igual­dade de opor­tu­ni­dades para todos. Mas o que temos vindo a as­sistir é à con­de­nação de mi­lhares de alunos com NEE a per­cursos al­ter­na­tivos de menor va­li­dade, com inú­meros obs­tá­culos e uma imensa ca­rência de apoios e me­didas ade­quadas. O afas­ta­mento brutal e de­su­mano de de­zenas de mi­lhares de alunos das me­didas de Edu­cação Es­pe­cial é uma fa­ceta dra­má­tica da po­lí­tica do ac­tual Go­verno. Um sis­tema pú­blico de edu­cação re­clama uma es­cola in­clu­siva, se­gundo a qual todas as cri­anças e jo­vens, in­de­pen­den­te­mente das suas di­fe­renças, ori­gens e con­di­ções, possam aprender juntos, na Es­cola Pú­blica da sua co­mu­ni­dade, no res­peito pelos prin­cí­pios da de­mo­cra­ti­zação da edu­cação e da igual­dade de opor­tu­ni­dades. Não há es­cola in­clu­siva se não forem cri­adas con­di­ções nesse sen­tido, o que exige apoios es­pe­ci­a­li­zados ade­quados aos alunos com ne­ces­si­dades edu­ca­tivas es­pe­ciais.

Ao invés do que fi­zeram os su­ces­sivos go­vernos que apos­taram num sis­tema edu­ca­tivo ao ser­viço dos in­te­resses do grande ca­pital, aban­do­nando o prin­cípio bá­sico e cons­ti­tu­ci­onal da su­bor­di­nação do poder eco­nó­mico ao poder po­lí­tico, o PCP de­fende um pro­jecto de de­sen­vol­vi­mento cre­dível e sus­ten­tado para o País que impõe a exis­tência de um sis­tema edu­ca­tivo de qua­li­dade, capaz de ga­rantir o de­sen­vol­vi­mento e en­ri­que­ci­mento do ser hu­mano, através da edu­cação, do co­nhe­ci­mento e da for­mação. Neste pro­jecto edu­ca­tivo tem papel cen­tral e in­subs­ti­tuível a Es­cola Pú­blica De­mo­crá­tica, gra­tuita, de qua­li­dade e in­clu­siva.